05 junho, 2016



A NOVA REVISTA DE POESIA «APÓCRIFA»

Apresentação do Nº 5 | Tema: Narciso



Há anos, pus-me a glosar alguns dos mitos de Ovídio nas Metamorfoses, entre eles também o de Narciso. E lembrei-me de que uma parte do que escrevi poderia fazer sentido para abrir a apresentação desta «Apócrifa  Narcísica». Leio-vos apenas o começo, que contém o essencial do que me interessa agora:

narciso

quando da ninfa azul, liríope,
nasceu narciso, perguntaram a tirésias
se ele viveria muitos anos. E o cego disse:
«se a si mesmo se não conhecer!»
quinze anos teria narciso quando um dia,
depois da caça, descobre a fonte

de água sem mácula e, ao beber,
outra sede, que não a de água, sente:

a daquela imagem que do lago o chama,
ser de paixão, belo como uma estátua
de mármore de paros.

nega-lhe o espelho o beijo

de cada vez que se aproxima,

e uma voz lhe diz: «o que desejas
não existe, mas veio contigo,
contigo ficará, se ficares,
e desaparecerá, se dele conseguires
separar-te.» não se afasta narciso,
e uma doce loucura desce

sobre os seus olhos....

e uma loucura ensimesmadasmamento. A poesia 182deem infinitasarion, 1964-1965.ltei, o que escrevi, escrevie cantavam na  o ar pré uma
A loucura de Narciso é um ensimesmamento. Nasce de uma ilusão: a que confunde eu e outro. E de um desejo obsessivo: chegar ao que sempre se retira, ao Outro de nós. A poesia nasce da loucura ensimes-mada, e assim tem de ser na poesia que conta, para que o eu se liberte de si e encontre os seus «objectivos correlativos» (dizia Eliot), «a geometria verdadeira das coisas» (escreve a Marta Esteves neste número)  — a poesia é um exorcismo do eu através deste meu corpo, porque outro corpo não tem para exorcisar. A Beatriz de Almeida Rodrigues escreve: «És um corpo de poeira / és um corpo / és».  E quando suspende o verso ao dizer «és», deixou para trás nome, corpo, atributos. Ficou nua. Pura existência. É dessa nudez que nasce o poema. Apocrifamente. Como Narciso, que a si mesmo se não pode conhecer, quer dizer, que não pode enamorar-se do corpo, do rosto, da identidade de um eu-outro a que nunca chegará, mas que busca sempre. Muitas vezes, os melhores poetas dão a esse «eu» um nome, que desde logo o distancia (como o pseudónimo, o acrónimo, o anagrama – não os haverá por aqui? Há, quase tudo cheira a nomes transfigurados, travestizados, desde o primeiro número da Apócrifa – et pour cause!): mas agora falo do nome «Tu», que é ele/ela e o outro, que é Eu e mundo, que é Narciso na borda do lago e Narciso no espelho – qual deles é o verdadeiro? Não há verdade em Narciso, Narciso é por excelência vítima da ilusão de si, criança ingénua que se ficou pela «fase do espelho», diria Lacan, imaginando-se como Outro – e desconhecendo-se. A «Fotografia de Narciso» do André Alves é um testemunho da perda de todas essas ilusões: o seu Narciso é um eu que se retira, em vez de se enamorar de si, um eu para lá de toda a «Incoerência sazonal / Na urgência solipsista», diz ainda a Marta, num poema que respira e aspira a um entendimento da «geometria das coisas» muito para lá de si própria.



Tudo isto me parece assinalar algo de diferente neste conjunto de poetas «apócrifos», os sem-nome, sabendo nós afinal os seus nomes. Por isso quero pensar um pouco convosco o sentido do «apócrifo», que remete para um conjunto de vozes animadas por uma vontade de anonimato, que se encontram sem se confundirem. Rilke, o autor desse pequeno mas fascinante escrito chamado Notas sobre a melodia das coisas (das coisas e não do Eu!), diria que estamos, com este conjunto de poemas, perante uma grande melodia que nos chega através de vozes singulares. A grande melodia é o murmúrio do mundo – a que vocês dão ouvidos, mais do que outros —, as vozes singulares dão-lhe forma de linguagem, como as pedras a transformar-se em palavras (Beatriz – esta ou a «Alguém»?), como o coleccionador de vozes (Duarte Harris – será mesmo Harris?), que sabe que «tudo se reconstrói e reorganiza / com a mesma matéria [essa, a das palavras] / sem novidade», como aquele outro poema (do Tristan A. Guimet – nome de ecos mitológicos e orientais) em que o silêncio do mundo se transfere para a palavra e a transforma numa espécie de lugar do absoluto, «uma casa / para morrer» (e o falarmos aqui de «vozes», e não de nomes ou poetas, tem muito que se lhe diga, e é exactamnte por aí que leio a vossa poesia).
Isto é algo de raro na poesia de hoje (e mais ainda na de ontem), como Manuel Gusmão também intui, quando confessa que não vos conhece, aos poetas da Apócrifa, nem isso é o que importa. Mas já o não acompanho no paralelo com o Pessoa da «Auto-psicografia»: porque penso que não é tanto a consciência do fingimento o que vos distingue – embora aquilo que em vocês sente acabe também por servir um pensamento poético. E também hesitaria em afirmar que os poetas «apócrifos» se distinguem pelo regresso de «coordenadas líricas» mais ou menos apagadas pelos «poetas sem qualidades» que vos antecederam e ainda aí estão. Penso antes que as linhas de afinidade e continuidade (também em relação a outros: ouço por vezes por aqui ecos de Al Berto) predominam. Bastaria voltar a abrir, por exemplo, o editorial do primeiro número da Telhados de Vidro para se perceber que para os «poetas sem qualidades», como para os «apócrifos», a poesia continua a ser aquela coisa não solene, não decisiva, não escrita com maiúsculas, que aposta no efémero, suspendendo qualquer ideia elitista, mas ao mesmo tempo é a única coisa que verdadeiramente importa para preencher o enorme bocejo que são (seriam) os nossos dias, neste mundo em que a poesia continua a fazer-se, porque não temos outro. O Vasco Macedo diz isto, e desemboca na morte, nas pequenas mortes dos dias, como antes dele Manuel de Freitas, nos «dias, pequenos charcos», como antes dele Joaquim Manuel Magalhães, no longo poema «Alguém fez uma incisão na pedra...»; e na abertura da Telhados de Vidro, há uma dúzia de anos (2004), lemos:
«'A poesia não interessa' – e isso, como tudo, já foi dito. Acreditamos, alguns, no intervalo entre o dito e o não dito. Depende dos casos.
Estamos todos sozinhos, mesmo os que nunca leram Rilke, Pessoa ou Larkin [eu diria: precisamente esses!]. A poesia – isso que não interessa – é uma forma primária e elaboradíssima de comunicação. Mas não temos um canal, uma razão suficiente ou sequer um prazo de validade. [...] A poesia, que não nos interessa rigorosamente nada, move-nos de quando em quando. Temos de nos distrair da morte, e não sabemos muito bem como. Talvez assim.

Vista deste modo, a poesia não tem propriamente um destino, embora tenha a sua destinação (a desta, de que falamos hoje e agora, são os nossos ouvidos, os nossos corpos, as nossas sensibilidades, que sairão daqui com uma disposição diferente daquela com que entraram – esta é a «razão suficiente» da poesia, que não é universal, mas local e singular); a palavra do poema – dos vossos poemas – é «inutilmente exacta» (Gastão Cruz), com uma mínima e leve vocação utópica que a faz ir adiante, mas não lhe concede quaisquer direitos em relação ao futuro – o poema é todo presente, embora possa abrir portas que dão para lugares quase sempre melhores que o seu presente. Para se perceber isto, o melhor será ler os poemas (e ainda os ouviremos), mas eu estou aqui para falar deles, dos vossos, esperando que por essa via possa lançar alguma luz, ou uma luz diferente, sobre eles, como quem dá a volta ao interruptor num quarto escuro, ou coloca um abat-jour à volta de uma luz demasiado intensa, sabendo de antemão que não chegarei à fonte de luz que emana do próprio poema. Dele, e apenas dele. Para isso, pensei que o melhor seria seguir o caminho que mais me agrada, o da objectivação do poema ignorando-lhe o nome, do olhar despersonalizado sobre a realidade que o poema capta nas suas linhas de força, sem identificar rostos, que por vezes se confundem. Neste sentido, o poema contém em si todas as qualidades, e por trás dele está o poeta sem qualidades. O ser sem qualidades é em si a maior das qualidades – sei-o por convivência longa com o arquétipo de todos os «homens sem qualidades», o de Musil.


O que sinto mais nestes vossos poemas é essa grande qualidade, aparentemente negativa, da retirada do nome, da rasura do Eu. Lemo-vos e percebemos que vocês sabem que a assinatura do poema é sempre outra que não a do nome civil, como de si sabia também Benjamin, que um dia decidiu não usar a palavra «eu» no que escrevia. E perguntava: «Serei eu aquele que se chama W. B., ou chamo-me simplesmente assim?»  A essência do nome, conclui Benjamin, é «uma essência de linguagem». Essa essência está na «equação vaga» – qualquer coisa de enigmático, entre o rigor da matemática e a liberdade do voo – que é a linguagem do poema (como sugere a Beatriz), não no nome que o assina. Podia também convocar Maria Gabriela Llansol (que para si mesma inventa a fórmula, e a prática, do «poema-sem-eu»), ao aconselhar – com grande resistência do outro lado – Vergílio Ferreira a esquecer o nome, porque «o nome é nada» e «o nosso verbo é escrever». Mesmo a «Biografia», a do Vasco Macedo neste número 5 da Apócrifa, quando começamos a lê-la revela-se como outra coisa: é a escrita dos ecos que o mundo provoca sobre si, o seu corpo e a sua... alma. Llansol diria aqui, uma vez mais, ao seu «companheiro filosófico»: não existe biografia (pelo menos para a escrita), o que conta é apenas a «signografia do Há», ou seja um conjunto de sinais – uma «geografia», diz a Beatriz na sua leitura de si, à distância deste «país relativo», também aqui por interposta voz de um «tu» –, uma gramática sem regras de onde nasce essa escrita de sinais – não de vidas – que nos marcam o corpo e nos vêm dizer que existimos, que estamos aí, disponíveis, seres-para-a-morte, que a escrita constantemente desafia e mais ou menos sabiamente vai adiando.

Volto a Narciso, e à sua problemática ligação com o apócrifo. O choque é evidente: Narciso enamora-se de si, da sua imagem que é o seu nome, que perdura na flor em que se transformou; o apócrifo é o sem nome nem origem, o que apaga ou falseia deliberadamente a imagem que o nome transporta – e o Eu perde-se, apaga-se, questiona-se. Mas o mais interessante nos apócrifos com nome desta Apócrifa é que tudo isto se situa nos antípodas das tradições mais comuns da poesia portuguesa (incluindo alguma nossa contem-porânea), que ou é cegamente subjectiva, presa de um «narcisismo primário», ou tende a empolar um eu contestatário, rebelde com causas, sim, mas que se esgota numa irreverência as mais das vezes sem consequências (porque traz a irreverência a primeiro plano, a qualquer preço?). Nos apócrifos da Apócrifa, porém, o acto poético parece ter consequências – que mais não seja, a de voltar a mostrar como a palavra pode amplificar sentidos para lá do eu, como o mundo ganha contornos de coisa vivida e pensada com o corpo – o meu, que outro poderia ser?  (já Manuel de Freitas escrevia no seu primeiro livro: «um poema, mesmo que seja insuflável, / nunca salvou ninguém do seu corpo. / E é do corpo só que se trata»). Mas há mais consequências sensíveis no vosso trabalho poético: nele, os olhos, os do leitor, vêem mais do que o corpo e a vida de quem escreve, ouvem na sua voz a voz do ser, mas sem metafísica, o rosto da negativi-dade que o poema enfrenta e a que responde.

O título genérico (Apócrifa), que, quer se queira quer não, transporta consigo um programa, abafa o tema deste nº 5 (Narciso), o que pode querer dizer que nem o nome que assina sabe da fonte de onde nasce o poema, que de facto não há nome por detrás dele (apenas à superfície da convenção editorial). Aqui, Narciso agitou as águas e o seu perfil esfumou-se, desapareceu no torvelinho das palavras. Não sinto aqui enamoramento (do Eu), ouço o estranhamento (do mundo). E o instrumento deste modo leve de mudar que é o vosso é o de uma palavra poética que voltou a cair em si, esfriou, ma non troppo, congelou a euforia do Eu. E no entanto ela move-se, é ela que faz mover o eu, o que vive e o que escreve – e por isso é que não é apenas ele aquilo que se nos oferece no poema, mas sobretudo ela, a linguagem, e a sua capacidade de dizer e de mostrar, de se vestir com o que no mundo cai, acontece e nos afecta. E di-lo de uma certa distância, imprescindível para desfazer a ilusão de que eu e linguagem se confundem no poema. O fim dessa ilusão, que desponta nos textos desta Apócrifa, é o sinal de uma poesia que chegou à maioridade. Comparando-o com os anteriores (que li parcialmente online), há neste nº 5 uma clara inflexão e um curioso paradoxo. A inflexão vai no sentido de deixar para trás tiques mais pessoais e jocosos, que faziam parte de uma estratégia de irrisão e desconstrução, entre o «bêbado alegre e meigo» e o «lúcido triste e feroz», diria – disse – o Vasco; o paradoxo é este, e já ficou no ar no que eu disse antes: sendo agora o tema «Narciso», os poemas começam a ser muito menos narcisistas, põem o eu mais à distância, numa expressividade mais serena que contrasta com a febre de si, mais própria de Narciso. Parece-me ser um caminho a continuar. Um PLEC-Projecto Literário em Curso que, por ser projecto, ainda dará mais frutos. Que nasceu apócrifo e foragido, como «colectivo pré-contemporâneo», mas sem nenhuma intenção de voltar atrás ou de renegar uma contemporaneidade a que não pode fugir. Também nisto há um gesto de saudável recusa que não é niilista, mas sabe que não há presente sem passados – sejam eles os dos mitos a reinterpretar ou a  abater, ou os dos poetas a lembrar, a assimilar, a continuar: Prometeu, Fausto e Narciso, ou Cesariny e Orpheu, Herberto e Adília...

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Uma palavra ainda sobre os desenhos da Adriana Santos (de aqui se vêem alguns originais): o campo em que eles se movem, e nos movem, é o da vulva, do ventre, do útero, do seio... Do germinar e do nascer. E há ainda o olho – o olho de Narciso, órgão da sua perdição? Ou a semente de onde tudo nasce? Alguma coisa, escondida, está sempre à espera de nascer (para morrer sem morte, como Narciso metamorfoseado). O olhar (e o pensamento que ele activa) é a parteira. É o que leio nos desenhos, entre o naïf-infantil e o elaborado e provocatório, da Adriana.


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